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Terceiro Tempo

"Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola." - Nelson Rodrigues

Terceiro Tempo

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N'Kono, o ídolo de Buffon

28.01.20, Terceiro Tempo

O século XX foi rico em guarda-redes de calibre como é o caso de Lev Yashin, Gordon Banks ou Dino Zoff e depois temos exemplos de guarda-redes que ganham protagonismo por outras razões. Hoje iremos falar de Thomas N'Kono, guarda-redes camaronês com nacionalidade francesa, que para além das defesas fantásticas que realizou, serviu de inspiração para o italiano Gianluigi Buffon mudar a sua posição no campo: de atacante para guarda-redes.

Thomas N'Kono é um dos símbolos maiores de África e principalmente para o povo de Camarões, o ex-guarda-redes nasceu em 1956 na pacata cidade de Dizangué e desde cedo mostrava ter dotes para o futebol. Sempre quis ser guarda-redes e começou a dar os primeiros toques na bola ao serviço do Éclair Douala mas rapidamente mudava-se para a capital do seu país Youandé para perseguir o sonho de se tornar um jogador profissional de futebol. É ao serviço do Canon Youandé durante 8 temporadas (teve uma curta experiência - de um ano - ao serviço do rival, o Tonnerre) que vive um dos melhores momentos da sua carreira. Até 1982, foi titular incontestável dos Kpa-Kum. Em 1979, foi agraciado com o prémio de melhor jogador da África, sendo o primeiro guarda-redes a consegui-lo. Repetiu a dose em 1982, ano em que disputou o seu primeiro Campeonato do Mundo enquanto ainda representava o Canon Youandé. Ao serviço do Canon, N'Kono conquistou vários campeonatos nacionais e ganhou, por duas vezes, a Liga dos Campeões africana.

Tommy (assim era chamado) não era o nome maior da seleção de 1982, esse estatuto pertencia a Roger Milla, o goleador sorridente. Neste mundial, os Camarões não conseguiram passar da fase-de-grupos mas só o facto de terem estado presentes já era uma vitória. Com 3 jogos e 3 empates diante da Polónia, Peru e Itália (que viria a conquistar a prova), ficariam num honroso terceiro lugar que devido à diferença de golos com a Itália não seguiram em frente na prova.

Muitos dos jogadores desta seleção dos Camarões jogava em clubes do seu país, este Mundial foi o "trampolim" para muitos deles conseguirem bons contratos na Europa e um deles foi N'Kono que não regressaria ao seu país e assinava pelo Espanyol de Barcelona onde ficaria por oito anos sendo sempre titular da equipa catalã. As suas exibições encantavam os adeptos, principalmente pela agilidade e reflexos dentro dos postes e por sempre jogar com calças compridas. Durante este período em Espanha obteve um recorde de 496 minutos sem sofrer qualquer golo. Viveu excelentes períodos no clube catalão mas sem nunca conquistar nenhum título, até estiveram perto em 87/88 quando atingiram a final da Taça UEFA (atual Liga Europa), depois de eliminarem os todo-poderosos AC Milan, Inter e Borussia Monchengladbach. Na final contra o Leverkusen a coisa estava encaminhada, com um 3-0 na primeira mão. Na segunda, no entanto, chegou a tragédia: 0-3 e derrota nos penáltis.

Apesar do brilharete conseguido no Mundial de 1982 em Espanha, a seleção dos Camarões vacilava e não cumpria as expectativas para se qualificar para o Mundial de 1986 (conquistaram a CAN em 1984 provando serem a equipa mais forte africana daquele momento) mas conseguiriam qualificar-se para o Mundial seguinte realizado em Itália, em 1990.

Neste Mundial, a seleção africana não podia começar com um desafio mais difícil naquele Itália-90. Pela frente tinha logo a campeã do mundo, depois do show de Maradona em 86, no México. Os africanos, inspirados, uma vez mais, pelo bailarino Roger Milla, venceram por 1-0 e acabariam esse grupo num inesperado primeiro lugar. A seleção dos Camarões transformar-se-iam na primeira seleção africana a atingir os quartos-de-final de um Mundial: caíram contra a Inglaterra (2-3), em Nápoles.

Este foi um Campeonato do Mundo extremamente importante para N'Kono mas também para o "pequeno" Buffon que assistia ao jogos na televisão com apenas 12 anos. Gigi era avançado na altura mas N'Kono surpreendeu-o com as suas defesas e mudou rapidamente de ideias: queria ser guarda-redes. Numa entrevista à BBC, o melhor guarda redes italiano de sempre afirmou que «Os olhos de todo o mundo estavam em jogadores como Diego Maradona e Gary Lineker, mas eu estava deslumbrado com Thomas N'Kono [...] Foram as coisas que ele fez pelos Camarões durante aquele Campeonato do Mundo que me inspiraram para ser guarda-redes.»

Após o Mundial, Tommy perderia espaço no Espanyol e abandonaria o clube um ano depois muito por culpa da contratação do hispano-brasileiro VIcente Biurrun. Devido a vida que levava na cidade, N'Kono rejeitou vários convites para continuar a jogar na Catalunha mas desta vez em clubes de pequena expressão: no Sabadell, onde jogou cerca de 70 partidas entre 1991 e 1993 e pelo L'Hospitalet onde esteve apenas na temporada de 1993-94 sendo titular do clube.

Em 1994, com 37 e claramente na sua fase descendente da carreira mas ainda com uma boa forma física, foi convocado para a último Mundial que disputara mas não sendo titular, ironicamente perdeu o lugar para Joseph-Antoine Bell, que tinha 39 anos na altura. Foi também o pior Mundial que N'Kono esteve presente: 3 jogos com 2 derrotas diante da Suécia e Brasil (futuros campeões mundiais) e um empate diante da Rússia. Chegaria ao fim a sua participação pela seleção. Em 18 anos, foram 112 partidas com a camisa dos Leões indomáveis.

Se a carreira internacional chegou ao fim, a nível de clubes N'Kono ainda tinha muito mais para dar, assinou pelo Bolívar da Bolívia em 1994 e até terminar a sua carreira de jogador três anos depois, aos 40 anos de idade, com mais um recorde: o de guarda-redes com mais tempo sem sofrer golos: na temporada 1995, foram 761 minutos de invencibilidade superando Jorge Battaglia e conquistando dois campeonatos.

Após o término da sua carreira, Nkono passou a ser treinador de guarda-redes da seleção camaronesa, tendo trabalhado até 2003. Em 2002, envolveu-se numa polémica: na meia-final da Copa Africana de Nações daquele ano, entre Camarões e Mali, o ex-guarda-redes foi acusado de praticar magia negra e foi preso.

Voltaria ao "seu" Espanyol em 2003, também como treinador de guarda-redes, função que exerceria até 2009, em paralelo com a seleção de Camarões. Na segunda passagem pela comissão técnica dos Leões, foi treinador adjunto entre 2007 e 2009, quando teve sua primeira experiência como treinador no mesmo ano. Em julho do mesmo ano, regressaria ao Espanyol permanecendo no clube até aos dias de hoje.

Para terminar com esta rubrica, deveremos dar duas curiosidades extremamente interessantes: a primeira é que Buffon decidiu homenagear Tommy dando ao seu filho, em 2007, o nome Louis Thomas N'Kono, mostrando assim o respeito que tem pelo ex-guarda-redes africano. Outro aspeto incrível de Buffon e contando pelo próprio Tommy foi na ida de Gigi ao jogo de despedida realizado nos Camarões: «Pedi-lhe para ir ao meu jogo de despedida nos Camarões. Ele disse 'sim, sem problema', mas nunca acreditei que ele fosse. Depois, à última hora, ligou-me a dizer que estava no aeroporto prestes a voar para os Camarões. Foi incrível.»

Tommy e Gigi desde 1990 estiveram "ligados". A belíssima prestação do guarda-redes africano valeu a troca de posição de Buffon de campo e o seu primeiro grande ídolo no futebol. Atualmente, Gigi é mundialmente reconhecido como um dos melhores guarda-redes de sempre de futebol. O que seria de Buffon se tivesse continuado como avançado?