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Terceiro Tempo

"Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola." - Nelson Rodrigues

Terceiro Tempo

"Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola." - Nelson Rodrigues

A bela odisseia do Sheriff Tiraspol

28.09.21, Terceiro Tempo

Até há bem pouco tempo o clube Sheriff Tiraspol era um clube perfeitamente desconhecido para o adepto do futebol em geral. O clube situa-se na Transnístria, região que declarou em 1990 a sua independência à Moldávia. Essa independência não é reconhecida, sendo que o clube faz parte da Moldávia e é o principal clube daquele país e fez história ao seu o primeiro clube moldavo a chegar à fase de grupos da Liga dos Campeões.

A "capital" da Transnístria é Tiraspol. Cidade onde é Sheriff começou a sua história. Fundado em 1997, por um ex-polícia (daí o termo de xerife no nome) chamado Victor Gusan, o FC Sheriff estabeleceu-se de forma praticamente imediata como a principal força do futebol local. Tem 19 títulos nacionais, dez deles em anos consecutivos. O desejo declarado pelos dirigentes, há uma década, era atingir a fase de grupos da Champions. Conseguiu neste ano, após passar as várias fases de classificação contra adversários mais poderosos, como o por Teuta (Albania), Alashkert (Armênia), Estrela Vermelha (Sérvia) e Dínamo Zagreb (Croácia).

A companhia Sheriff é dona de um canal de televisão, uma rede de supermercados, uma empreiteira, uma fábrica de celulares, entre tantos outros investimentos, além de uma enorme rede de postos de combustíveis. Assim, vivendo uma realidade financeira bem diferente dos rivais, o Sheriff não enfrentou muitas dificuldades para se impor na Moldávia. Apenas um ano após sua fundação, já estava na primeira divisão. O primeiro título veio em 1999, com a Taça da Moldávia. O início do decampeonato foi em 2001.

O clube é relativamente modesto em termos de plantel. O país não consegue atrair muitos jogadores devido à sua língua, ao futebol que não tem grande nível quando disputado localmente, e os ordenados não são suficiente altos para atrair jogadores de outra qualidade técnica e táctica, mas ainda assim conseguiram, degrau a degrau fazer história nesta Liga dos Campeões e o sorteio da fase de grupos foi tudo menos favorável: Real Madrid, maior vencedor da Liga dos Campeões, o Inter, atual campeão italiano em título e o Shakthar, clube ucraniano bastante rotinado no que diz respeito a esta prova e com um orçamento bem superior ao clube moldavo. Facilmente se esperava que o Sheriff fosse uma espécie de "saco de pancada" em todos os jogos mas... mais uma vez provou a todos nós que estaríamos errados!

Na estreia na fase de grupos da Liga dos Campeões, a jogar em sua casa, na bela cidade de Tiraspol, o Sheriff defrontou o Shakthar. Independentemente do resultado, o jogo por si só já seria histórico de uma página dourada para o futebol daquele país. Ainda assim, o Sheriff mostrou que não seriam favas contadas e conseguiu mesmo ganhar ao Shakthar de forma contundente, escrevendo assim mais uma página de orgulho para aquela região que há muito ansiava por momentos brilhantes como aqueles.

Hoje, o Sheriff voltará a brilhar, mesmo com ou sem vitória. A história já foi escrita e neste momento os jogadores não têm qualquer pressão sobre si. Jogam pelo gosto ao futebol. Hoje deslocar-se-ão ao mítico Santiago Bernabéu, a maioria daqueles jogadores apenas pensaria, há uns meses atrás, que jogaria só na Playstation naquele estádio mas o que é certo é que está provado que os sonhos se cumprem, basta acreditar-nos e mantermo-nos focados no objetivo. Daqui a umas horas não quero saber do resultado do Sheriff, apenas ver 11 jogadores a correr atrás da bola, sorridentes, porque tocaram o céu e esse mérito, ninguém poderá tirar.

Kalusha Bwalya, o abelha-negra do futebol zambiano

27.09.21, Terceiro Tempo

O ano é 1988 e o cenário desta epopeia são os Jogos Olímpicos de Seul, na Coreia do Sul. Em 19 de setembro, o Mundo conheceu o talento de Kalusha Bwalya, zambiano,  nascido em 16/08/1963, na cidade de Mufulira, e que fez um hattrick diante da sempre poderosa Itália, na vitória por 4-0 nos Jogos Olímpicos, numa das maiores atuações individuais de um jogador africano da história. A Zâmbia acabaria eliminada, apenas nos quartos-de-final, pela então Alemanha Ocidental (derrota por 4 -0), mas o seu nome já estava escrito na história.

Começou muito cedo a dar nas vistas na Zâmbia, atuando pelo clube da sua cidade, o Mufulira Blackpool. No ano seguinte, ele transferiu-se para o outro clube local, o Mufulira, aonde ficou por cinco anos, conseguindo destacar-se no futebol local e sendo convocado para a Seleção de Zâmbia pela primeira vez em 1983. Seria uma questão de tempo até dar o salto para o futebol europeu devido à sua qualidade ser francamente superior aos dos demais colegas.

Essa vinda para a Europa aconteceu em 1985, quando o Cercle Brugge, clube belga, abriu as portas ao astro zambiano. O que dizer sobre a sua ida para a Bélgica? A melhor resposta é dizer que triunfou categoricamente! , Foi ídolo para a torcida, tendo-se tornado o melhor marcador do clube na sua primeira temporada, além de receber o prêmio de melhor atacante do Campeonato Belga por duas vezes consecutivas. Ao fim de quatro épocas na Bélgica, estava na hora de rumar a um campeonato mais exigente, com uma maior qualidade futebolística e eis que o "abelha-negra" assina pelo PSV, clube holandês.

Na Holanda, Bwalya não teve o mesmo protagonismo que teria nos clubes anteriores. Também seria difícil, estamos a falar de um dos melhores conjuntos do PSV de toda a sua história com Romário, um dos melhores jogadores brasileiros de sempre, a ser a principal figura da equipa. Ainda assim, não sendo titular indiscutível, isso não preocupou o zambiano que ficou considerado como uma espécie de "suplente de luxo". Apesar de ser reserva e ciente do seu espaço no clube, Kalusha atuou por 101 vezes e marcou 25 gols pelos holandeses, no qual sagrou-se campeão nacional nas temporadas de 1990/1991 e 1991/1992.

Neste período de futebol holandês, coincidiu também com o pior momento de sempre do futebol zambiano, que ainda hoje é difícil de ser recordado por Bwalya. A Zâmbia, como também já referimos na publicação sobre Chitalu, era uma potência emergente no continente africano com grandes aspirações a conseguir disputar um Mundial e Kalusha era o líder e capitão de uma geração talentosa, mas no dia 27 de abril de 1993, o grande ídolo teve que se deparar com uma tragédia que vitimou toda a delegação de Zâmbia que rumava para Dakar para enfrentar Senegal pelas eliminatórios para a Campeonato do Mundo de 1994, num dos maiores desastres aéreos relacionados com o desporto em geral. O avião zambiano caiu a 500 metros de Libreville, capital do Gabão, após escala rumo ao Senegal e Kalusha só escapou porque o PSV havia feito um acordo com a Associação de Futebol de Zâmbia para que o jogador viajasse direto de Eindhoven para Dakar, onde iria encontrar-se com seus companheiros. 

O atacante foi peça fundamental, pela sua liderança, numa seleção totalmente reformulada e que viria a terminar aquelas Eliminatórias, no segundo lugar, apenas um ponto atrás do classificado Marrocos. Em 1994, Kalu, como também era carinhosamente tratado, estava presente, liderando a seleção nacional no vice-campeonato da CAN, realizada na Tunísia, com a equipe sendo derrotada pela fortíssima Nigéria. Dois anos depois, Zâmbia terminou na terceira colocação da CAN, com Kalusha sendo o artilheiro da competição com cinco golos

Voltando para os clubes, sabendo que estaria a perder cada vez mais o seu espaço na Holanda, Bwalya toda uma decisão... surpreendente. Em 1995, aos 31 anos, rumou ao futebol mexicano onde permanceu durante 6 temporadas e todas elas sempre em bom nível. Primeiro assinou pelo América da Cidade do México. No clube auri-azul, Kalusha foi ídolo e atuou em 88 jogos, marcando 21 gols. Em 1997, foi para o Necaxa, onde sofreu com algumas lesões que o impediram de chegar à sua melhor forma, atuando apenas em 17 jogos e marcando somente um golo. Depois foi passando de clube em clube mexicano até ao término da sua carreira no ano de 2000 quando se transferiu-se para o Correcaminos, seu último clube. No futebol mexicano, sempre foi querido por todos os lugares por onde passou e, segundo o próprio jogador, ele é um “africano com alma mexicana”, tamanho o carinho que o mesmo nutre pelo país azteca. Um dos feitos pessoais de Kalusha atuando em terras mexicanas ocorreu em 1996, quando foi eleito o décimo segundo melhor jogador de futebol do mundo pela FIFA, sendo que ele, Kalusha, foi o único jogador relacionado a estar atuando fora do continente europeu. Histórico!

A sua história ainda não termina por aqui, sempre com a postura de liderança, Kalusha Bwalya assumiu o comando técnico da Seleção Zambiana em 2003, exercendo a dupla função de treinador e jogador. Em 2004, um momento singelo na carreira do maior jogador de Zâmbia de todos os tempos: durante um jogo das Eliminatórias para a Copa do Mundo/Alemanha-2006, contra a Libéria, então com 41 anos de idade, Kalusha saiu do banco para dar a vitória à sua seleção e levar uma multidão fanática ao êxtase. Este foi seu 100º jogo e seu 50º gol pela Seleção. Em 2006, após 36 jogos, o atacante saiu do comando técnico da seleção nacional.

Kalusha Bwalya, abelha-negra ou simplesmente Kalu, ficará para sempre ligado à história do futebol zambiano. Um avançado destemido, muito combativo que só não conseguiu brilhar mais com a sua seleção devido àquele trágico acontecimento. Ainda assim, Kalu não virou a cara à luta e esteve sempre presente para ajudar a melhorar o futebol naquele país. Atualmente, o futebol zambiano vive uma clara escassez de talento como outrora teve, sendo pouco os jogadores que jogam no futebol europeu e nenhum que esteja numa grande equipa. O acontecimento destruiu a maior geração da história da Zambia e até aos dias de hoje ainda não foi possível recuperar.